Advento nos convida a “fazer estrada”, numa viagem em busca do mundo interior, sede dos desejos, daquilo que é importante e essencial, o nosso modo de projetar o futuro, as nossas decisões... Nesse “mergulho” interno cada um pode construir uma espécie de mapa do “eu”, com as regiões fortes e fracas, vulneráveis e criativas, transparentes e ainda misteriosas.
A figura de João Batista “toca” o coração de cada um e nos possibilita “entrar” em nosso mundo e captar em profundidade a nossa realidade, a perceber a raiz do nosso ideal de vida (cada vez mais atraente-convincente-exigente), como também suas contradições e ilusões, medos e necessidades.
Esse processo interior, motivado pela presença instigante do Batista, nos motiva a elevar vales e rebaixar montes de nossa paisagem interior: desmontar colinas do medo, nivelar os acidentados terrenos de esperança, alongar a “pele da alma” para nos redimir das escleróticas rugas dogmáticas e facilitar os caminhos do Senhor.
Profundidade e amplitude: são as duas dimensões ativadas neste tempo litúrgico do Advento; elas estão intimamente conectadas de modo que quanto mais profunda é uma pessoa, mais livre se faz de seus limites imediatos e mais capaz de olhar amplamente a realidade que a envolve.
E o percurso do caminho interior nos ensina muitas coisas. Aquele que “desce” em seu interior, é alguém que não tem medo de si mesmo, de olhar para si em todos os aspectos e dar-se conta do que está acontecendo. Um fio e intenso raio de luz penetra e ilumina, quase imperceptível, alguns rincões do seu aposento interior. Em seu silêncio interior, nas profundezas de seu ser, acolhe, escuta e reconhece o murmúrio de uma voz, chamando-o a engajar-se na aventura do serviço a Deus e aos outros. Com o passar do tempo, torna-se capaz de reconhecer a ação de Deus.
É ali que a pessoa descobre aquilo que podemos denominar a “bússola interior” do coração, algo capaz de lhe revelar as “moções” de seu íntimo; “moções” que mobilizam a energia vital mais profunda de seu ser. Esta interiorização é abertura, é dilatação do coração, é expansão do ser em direção a um mundo percebido como “morada do Criador”.
No nosso processo espiritual do Advento, devemos também ativar esta capacidade de ver quem somos nós, onde estamos, para onde vamos... sem o temor de nos defrontarmos com respostas desagradáveis.
Somente partindo da realidade de nós mesmos, do conhecimento do nosso terreno interior, poderemos crescer como peregrinos em direção a um horizonte que progressivamente se mostrará sempre mais claro. Caminhando por estradas interioresdesconhecidas, poderemos atingir experiências imprevistas e surpreendentes, ou reconhecer “vozes novas” que nos mobilizam na direção de uma causa nobre e divina.
Dizem que há pessoas capazes de serem curadas por uma voz, pela sonoridade de uma voz determinada. Vozes que “tocam” e despertam forças desconhecidas. Certas vozes nos devolvem ao nosso ser essencial. Quanto aspira nosso coração escutar uma voz que desate em nós forças libertadoras! Livres do domínio de nossas compulsões, livres para amar sem defesas, livres para sermos nós mesmos e poder entrar numa relação nova com a realidade...
Somos seres de palavras e somos também seres de silêncio. Neste mundo de “palavreado crônico” temos esvaziado o dom da palavra, as palavras tem pouco valor, as vozes se fazem estridentes e agressivas... Por isso, precisamos educar nossa voz no calor do silêncio, porque só o silêncio restaura a integridade de nossas palavras. Essas palavras podem curar, elevar, comunicar vida... Vozes que devolvem a dignidade a cada pessoa, remetendo-a a si mesma, ajudando-a a conectar com seu ser mais profundo.
Precisamos ouvir vozes que toquem nossas superfícies endurecidas e nos libertem de tantas ataduras que não nos deixam respirar com profundidade, nem olhar compassivamente, nem considerar a beleza da diversidade e da diferença. Também nós buscamos pessoas que possam nos dizer palavras para viver e somos também cobrados a entregar aos outros uma palavra de vida.
Os primeiros cristãos viram na atuação e na voz do Batista o profeta que preparou decisivamente o caminho para a chegada do Messias. Por isso, ao longo dos séculos, a voz do Batista continua ressoando com intensidade, despertando-nos para uma atitude de acolhida d’Aquele que quer fazer morada entre nós. Lucas resumiu sua mensagem com este grito tomado do profeta Isaías: “Preparai o caminho do Senhor”.
O importante é a Voz, uma Voz que grita e diz: “preparai”. Ela nos define e nos faz ser mais humanos, pois alimenta nossa esperança e nos abre um caminho de transformação. É tempo de profetas, tempo para escutar e discernir as vozes que vem do interior e vozes de outros homens e mulheres que abrem, com sua palavra, uma esperança de humanidade. Uma voz que grita no deserto: nossos “reinos neoliberais” estão demasiados cheios de propaganda deste mundo, de poder e de dinheiro, de intrigas e invejas, de corrupção e falsos amores, de puras imagens que passam e morrem, mantendo as pessoas ocupadas em suas mentiras e ilusões.
É preciso sair ao deserto, retornar ao silêncio dos grandes profetas para escutar as vozes verdadeiras, aquelas que brotam do eu mais verdadeiro e que nos fazem mais humanos. Fernando Pessoa nos diz: “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.
O caminho foi e continua sendo uma experiência de rumo que indica a meta e simultaneamente é o meio pelo qual se alcança a meta. Sem caminho nos sentimos perdidos, interior e exteriormente. Assim se encontra a humanidade, sem rumo e num voo cego, sem bússola e sem estrelas para orientá-la nas noites tenebrosas. Cada ser humano é “homo viator”, um caminhante pelos caminhos da vida. Assim disse o poeta cantor argentino Atahualpa Yupanqui: “o ser humano é a Terra que caminha”. Não recebemos a existência acabada; devemos construí-la. E para isso é preciso abrir caminho, a partir e para além dos caminhos andados que nos precederam. Assim, nosso caminho pessoal nunca está dado completamente: tem de ser construído com criatividade e sem medo.
Esse é o sentido de nossa existência: escolher quê caminho construir e como seguir por ele, sabendo que nunca o percorremos sozinhos. Conosco caminham multidões, solidárias no mesmo destino, acompanhadas por Alguém chamado “Emanuel, Deus conosco”. O cristão é um contínuo peregrino, enamorado do caminho, não da meta. E caminhando aprenderá a ser feliz com pouco e a ser companheiro samaritano; aprenderá também que o caminho é a meta e que é mais importante saber caminhar que chegar. E caminhando, ele se tornará caminho: um caminho de terra e de ar, de pedra e de fontes, de árvores e nuvens, de encruzilhadas incertas e horizontes luminosos.
Num albergue para peregrinos estava escrito: “Tu és o caminho”. Sim, nós também somos o caminho, a verdade e a vida. Como João Batista, que no caminho deixa ecoar sua voz que desperta e mobiliza a entrar em sintonia com “Aquele que está vindo ao nosso encontro”. Neste longo percurso, os convites de Deus são absolutos e constantes. Se estamos apegados ao que temos, jamais seremos capazes de “fazer estrada com Deus” e participar da preciosa vida que Ele nos oferece.
Texto bíblico: Lc 3,1-6
Na oração: “Senhor, mostra-nos teus caminhos!” Esta é a oração fundamental de Israel, a petição permanente dos Salmos. Para o povo que peregrina no deserto, é essencial conhecer direções e entender ventos. E para o coração que peregrina no deserto da vida, é essencial conhecer os caminhos do Espírito e os ventos da graça. - Seu caminho tem “alma”? Tem “coração”? Tem “voz”?